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O sentido verdadeiro de uma audiência é o ato de ouvir

O pai, um médico famoso de Brasília. A mãe, uma socialite. Já estavam com uma ação de divórcio litigioso e o processo era feio demais

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1 de 1 juiz família juiza justiça direito - Foto: iStock

Pedi a uma colega um caso que a tinha marcado para contar aqui. Eis o que recebo:

“O pai, um médico famoso de Brasília. A mãe, uma socialite. Já estavam com uma ação de divórcio litigioso e outras 12 em curso. Eu tinha acabado de chegar como juíza substituta e havia essa audiência preliminar designada. Já tinham ocorrido duas de conciliação e nada.

O processo era feio demais. O pai pedia indenização por danos morais e materiais contra a mãe. Pedia desde indenização pelas fraldas que comprara até as mensalidades da faculdade que a filha fazia. Motivo: a menina não era filha dele.

Descobrira, após o diagnóstico de uma doença da menina, e necessidade de verificar sua compatibilidade para fazer doação para ela, que não era seu pai. Em contestação, a mãe dizia que ele sempre soube não ser o pai. O pai era um amigo dele, a quem pedira para fazer isso porque ele (o pai traído) era gay, casou e teve a filha somente para dar uma satisfação à sociedade. Descobrir a verdade seria impossível.

A sentença seria necessariamente horrorosa. A audiência começou. Começaram a se xingar. Um advogado também ofendia o outro. Na hora, ao invés de fazer a audiência preliminar, resolvi tentar fazer diferente. Senti que as partes precisavam ser ouvidas. E vi que não conseguiria ouvi-las facilmente. A filha entrara na sala de audiência chorando…

Pedi para todos saírem da sala e ficar somente o autor. Nem o advogado deixei ficar. Isso não pode, eu sei, mas resolvi cometer esse pecadinho em nome de algo maior. Ouvi o médico por mais de meia hora. Me contou desde o nascimento da filha, das vezes que cuidava dela de madrugada, até a emoção de saber que ela escolhera medicina por causa dele. Saí da mesa e da postura de juíza e desci para abraçar aquele homem. Senti a dor dele.

Pedi para ele sair e mandei entrar a esposa dele. Já veio chorando. Contou que sua vida acabara. Que estava com fama ruim, que o ex-marido a estava perseguindo, que a filha estava sofrendo tudo aquilo. Deixei que ela falasse tudo o que quis, sozinha, sem advogada. Do mesmo modo, abracei-a e disse que entendia tudo que ela estava passando.

Depois ouvi a filha. Era o pior sofrimento. Sentia-se coisificada pelo problema dos pais. Pedi a todos para entrarem novamente. O clima já era outro. Não tinha mais choro. Falei na frente de todos o que ocorrera, agradeci a confiança dos advogados. Mudei o foco dos pais para a filha. O que ela sofria, o que sentia.

Consegui oferecer uma proposta que todos acharam razoável. Acabar com todos os processos em nome da filha. O pai foi além. Deixaria a filha continuar com o sobrenome dele e continuaria a pagar a faculdade dela. Sentenciei ‘os meus’ dois processos e o acordo englobou também os outros 12, 14 processos em uma tarde.

Liguei para o juiz que tinha tentado o acordo duas vezes para contar. Ele ficou muito emocionado, mas até hoje toda vez que me encontra diz que me odeia por eu ter conseguido em uma tarde esse acordo. Não foram 14 processos. Foi uma vida. Uma vida doente e que possivelmente continuou doente, mas que foi possível proteger a parte mais fraca e trazer um pouco de tolerância com o simples sentido verdadeiro do que é uma audiência: o ato de ouvir.”

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