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Literatura candanga: boas surpresas de Paulliny Tort e de Beatriz Leal

Não é comum ler dois livros que valham a pena em tão pouco tempo. Mas “Allegro ma non troppo” e “Mulheres que Mordem” são boas surpresas

atualizado

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Marcelo Casal
Paulliny Gualberto Tort autora
1 de 1 Paulliny Gualberto Tort autora - Foto: Marcelo Casal

Nas últimas duas semanas, li dois livros. Ambos de autoras brasilienses ou aqui radicadas. A ideia era separar um para comentar aqui com os leitores da coluna. Não foi possível escolher, porque ambos merecem ser apresentados ao público. Tive 100% de aproveitamento em 15 dias. Isso não é muito comum. Diferentes entre si, mas ambos acima da média. Escolha um ou leia os dois. Valem a pena.

Começo com “Allegro ma non troppo”, da jornalista Paulliny Gualberto Tort (no alto, em foto de Marcelo Casal). Além de escrever sobre literatura em sites e blogs, ela apresenta, desde abril, o programa Marca Página, sobre literatura. A autora acumula ainda entradas sobre literatura no programa Café Nacional, ambos na Rádio Nacional. Isso significa que Paulliny reflete muito sobre o fazer literário e isso é muito bom para seus leitores, porque ela produziu uma obra segura, instigante e muito equilibrada.

ReproduçãoO livro, o primeiro da autora, foi selecionado para ser lançado na III Bienal do Livro de Brasília (dia 26/10, às 20h30, na Banca 308), e conta a história do violinista Daniel e sua busca por seu irmão João, que desapareceu, escafedeu-se, em 1995. Essa busca é o fio condutor de uma narrativa envolvente, bem construída, direta e detalhada, mas sem excessos.

Percebe-se, na leitura, a ação da sábia tesoura que corta adjetivos e passagens desnecessárias. A autora conta que, antes da versão finalíssima, jogou fora um terço da obra. É o mesmo princípio do entalhe, na escultura. A beleza nasce da retirada do excesso para atingir a forma final. A editora carioca Oito e Meio acertou na seleção do romance.

Narrado em primeira pessoa, a autora consegue descrever de maneira absolutamente verossimilhante o ponto de vista masculino. Sente prazer em experimentar essa liberdade narrativa que, por enquanto, o homem experimenta de maneira mais intensa, já que ainda vivemos em uma sociedade bastante machista. Paulliny conta que vai ser estranho quando a mãe ler o livro. Talvez pela descrição picante dos “amassos” de Daniel com Marina e, depois, com Gabriela.

Brasília está presente em “Alegro”. Nas palavras de Nicolas Behr, na contracapa, Brasília, “a cidade-que-não-é-mais-maquete pulsa neste romance”. A última parte do livro, que tem como cenário o Núcleo Rural do Córrego do Urubu, e a cena final, uma autêntica chuva do caju – a primeira chuva depois da seca em Brasília -, ainda em agosto, são um desfecho com poesia e algumas chaves, mas sem cair no senso comum do final feliz artificial.

Um incômodo apenas, ao longo das 170 páginas (apenas um, o que significa que o livro é muito bom): o uso dos informais “cê” e “tá” nos diálogos. Como a autora optou por não usar travessão (decisão acertada para o ritmo deste livro), essas informalidades dão um estalo no cérebro quando aparecem. Por um milésimo de segundo, elas entram no registro do narrador. Coisa pouca.

ReproduçãoOutra ótima surpresa foi o livro “Mulheres que Mordem”, da paulista radicada em Brasília Beatriz Leal. Assim como Paulliny, Beatriz é jornalista, e “Mulheres” é seu primeiro romance. Selecionado pela Ímã Editorial para um projeto de crowdfunding, o livro foi publicado em 2015, com a ajuda de amigos, que acreditaram no talento da escritora. Fizeram bem.

Ao estilo do diretor Robert Altman, em “Cenas da Vida”, o livro é montado sobre o entrelaçamento de diferentes histórias, que são narradas isoladamente. Cada um dos personagens vai sendo apresentado, de maneira intercalada e, mais interessante, em formatos diferentes. Duas em narração de terceira pessoa; outra em formato epistolar (em carta de uma das personagens); um outro em registro formal de consulta psicológica. O mosaico é muito bem montado. Concepção formidável. Execução eficiente.

O livro conta a história de Elena, Laura, Roberto, Rosa, Clara e Ramiro, personagens fictícios do drama real do sumiço de bebês durante a ditadura argentina. A história da personagem Elena é o fio condutor das outras tramas. Ela vive em Brasília, para onde se mudou, vindo de Buenos Aires com o pai.

Beatriz foi muito exitosa nos cortes de cenário e de personagem. Cada capítulo acaba no momento certo, para completar uma imagem, sem prejudicar o interesse na próxima. Os capítulos vão aumentando ao longo do livro, na medida em que as histórias se entrelaçam, e vão diminuindo para o final, na medida em que o leitor se aproxima do momento em que consegue montar o grande quadro. O livro é curto, pouco mais de 100 páginas, e pode ser vencido numa sentada. A história segura o leitor para tanto.

Dois pequenos problemas. Um mais e outro menos importante. O pequeno: o livro tem uma mesóclise. Soa estranho. Ainda mais nesses tempos bicudos. O grande: o penúltimo capítulo, de três páginas, é totalmente dispensável e destoante de todo o resto da obra. Ainda mais que, no último capítulo, uma carta de Roberto cumpre o papel de dar chaves sem ser demasiadamente direto e explicativo. Para a segunda edição, poderia ser substituído por uma cena, que exprima aquelas ideias.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cícero (Guardar, 1996, Record)

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