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Pistolagem, devastação e morte marcam o coração do Brasil

O crime organizado avança sobre terras da União rumo à Amazônia, maior reserva tropical do planeta

atualizado

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Marcelo Camargo/Agência Brasil
madeira
1 de 1 madeira - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na defesa da floresta, os extrativistas Éder Chaves Dias e João Coelho tentam impedir a passagem de invasores pelo Vale do Jamari, em Rondônia. Estão marcados para morrer. Como eles, centenas de outros entraram para a lista de alvos do crime organizado que avança sobre terras da União rumo à Amazônia, maior reserva tropical do planeta.

Ao mapear a grilagem em sete Estados do Norte e Centro-Oeste do País, o Estado identificou 485 focos de violência em 142 municípios. O preço do hectare e da madeira acirra a concorrência entre guaxebas, tradicionais matadores de aluguel, e catingas, milicianos que surgem no mercado do terror.

A repercussão da chacina de Eldorado do Carajás, em que 19 camponeses foram mortos há 20 anos no Pará, não puxou para baixo a curva da barbárie. O cruzamento de acervos do poder público e de entidades da sociedade civil revela que pelo menos 1.309 pessoas foram mortas em conflitos rurais no Brasil desde 1996. É como se um massacre da mesma proporção ocorresse a cada 100 dias O número de assassinatos equivale ao volume de árvores cortadas na Amazônia a cada 30 segundos, ininterruptamente, nas duas últimas décadas.

Uma série especial, que será publicada diariamente até o próximo domingo, vai expor a violência e as engrenagens da estrutura criminosa que mata homens e árvores em Mato Grosso, Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia e Tocantins. De setembro de 2015 a março deste ano, o Estado percorreu 15 mil km de estradas federais e encontrou histórias de tortura, incineração de corpos, chuva de veneno, suicídio de índios, crianças sob a mira de fuzis, venda de licenças e tabelas de execuções.

A relação de mortos inclui a geração nascida em agrovilas fracassadas, canteiros de obras inacabadas e aldeias sufocadas no tempo do Brasil Grande, projeto de desenvolvimento da ditadura militar. O levantamento revela que a maior parte dos assassinatos se dá com execuções à queima-roupa e disparos no crânio. Camponeses e índios são a maioria das vítimas, mas há também líderes de trabalhadores, sindicalistas, fazendeiros, delegados, seguranças e pistoleiros.

Os caminhos escolhidos pela reportagem foram traçados ainda no regime militar e hoje são canteiros de obras do governo federal. As BRs 060, 070, 364, 163, 230, 242, 319, 158 e 155 tiveram como base antigas rotas de bandeiras e monções que partiam do litoral para o interior no século 17. As BRs-364 e 230 cortam trechos da trilha do bandeirante Antônio Raposo Tavares, que saiu da Vila de São Paulo em busca de ouro. O desenho da BR-163 passa pela rota de Pascoal Moreira Cabral, fundador de Cuiabá. As curvas da BR-158 foram mapeadas por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera.

Os focos da violência se concentram na parte do território que, no período colonial, ficava a oeste do Tratado de Tordesilhas. Hoje, a travessia da faixa imaginária continua a expor a prática de ultrapassar o limite da civilização, diante do olhar interessado do Estado e de grupos econômicos. Expandir estradas nessas regiões não significa garantir direitos fundamentais. Em muitos casos, a pavimentação não é lançada para atender a uma demanda econômica regional, mas para facilitar negócios que nem sempre resultam em benefícios sociais. Enquanto o País tenta fortalecer instituições democráticas no Sul, Sudeste e nas capitais do Nordeste, não há investimento em desenvolvimento humano contra a matança no interior.

O que não faltou nos últimos anos, porém, foi recurso para estrada. De 2001 a 2015, o governo federal injetou mais de R$ 10,032 bilhões nas nove rodovias percorridas pela reportagem. Metade disso se concentrou em Mato Grosso e Pará, os Estados mais devastados no período. A leste de Tordesilhas, onde estão as metrópoles, o País está longe de ser imune à violência. Na matança no campo no lado oeste, entretanto, a fúria segue o rastro do dinheiro público, que, quando não é desviado, não promove cidadania. Confrontada com esquemas de corrupção, a tragédia rural também põe em debate a motivação por trás de muitas dessas grandes obras.

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